As minhas mãos estão cheias de veias, manchas pequeninas em vários tons de castanho. Os dedos falham-me no fogão. Limpo as mãos ao avental branco e vermelho aos quadradinhos que trago na cintura. Cintura essa que deu luz a cinco filhos… O meu marido, sempre de barba feita, cabelo penteado, grisalho como o meu, toma o seu leite, na varanda do nosso sexto andar. Sente a maresia e escuta o som das gaivotas que pairam sobre a sua cabeça. É inverno. O Algarve está vazio. Não existem almas a percorrer as calçadas da rua ou a fazer castelos na areia. Há muitos muitos anos que não sinto os grãos de areia a fazerem-me cócegas nos pés. O vento a bater-me na cara e a fazer voar os meus lenços do cabelo. Olho no espelho velho do nosso quarto, talvez tão velho quanto eu, e observo os meus olhos cinzentos, cor das rochas ao sol. Um cinzento claro, com tons de branco e preto, como se a espuma da água do mar se encontrasse com as conchas pretas na areia de um dia de verão.
Uma pessoa nunca pensa até que idade irá chegar. No meio do quotidiano da vida, vivendo um dia de cada vez, acabamos por não nos darmos conta da passagem dos anos. Os anos passam por nós. É essa a sensação que me dá. A minha cabeça ainda se lembra de quem eu era, quando nova. As paixões, os desafios, a rotina… Mas, nós também passamos pelos anos, certo? Para este nosso planeta, não somos nada. Não passamos de almas que estão cá num segundo e no outro não estamos mais. Será que a terra sente o meu peso? Sentiu o peso dos meus filhos, em cada nascimento? Sentiu o peso dos meus joelhos, sempre que me ajoelhei para pedir ajuda, pedir perdão, pedir refúgio? Será que alguém me ouviu?
Ouviste-me, tu, oh mar? Que bates as ondas contra a areia e as rochas, numa sincronia tal, que não tem fim. Ondas curtas, ondas longas, ondas inacabadas, ondas que não têm fim… Porque reclamas a tua natureza em cima da terra que me segura as pernas, e me faz caminhar pelos anos que passam por mim?
Poderei eu reclamar as minhas frustrações nas tuas ondas sem que me leves daqui? Poderei gritar aos ventos do oeste quem sou eu e o que faço aqui? Na melodia que passa na minha cabeça, vejo a valsa que dancei no dia do meu casamento. A mão do meu marido no fundo das minhas costas, a guiar-me como uma pena. O sorriso de quem acha que achou a mulher mais bonita de Lisboa. O sorriso vindo antes da gargalhada que ele sempre faz, e o passo cruzado a meio da valsa, não só para me trocar as voltas, mas para mostrar a todos o bem que sabe dançar. Eu era a parceira de dança do meu marido. Hoje não sou mais.
Hoje ele dança com as estrangeiras que vêm de férias para o Algarve. O nosso bonito Algarve. Hoje ele me visita num lar, onde me encontro numa cadeira de rodas, sem saber quem sou, quem fui ou quem ele é. Sempre que pode vem ver-me. Vem dar-me um beijo. E nos dias bons e raros, que sei quem ele é. E depois de tudo o que vivemos. Depois dos nossos setenta anos de casados… Aos noventa e quatro anos, digo o que sempre disse “Não importa o que ele faça ou diga. No final do dia, o meu amor por ele continua o mesmo.” Haverá, nos dias de hoje amores que durem na passagem dos anos? Ou os anos passam e o amor não dura? Saberás tu a resposta, oh mar? Ou simplesmente levas contigo aquilo que um dia me trouxeste? Um amor para a vida, ou uma vida de amor? Saberás a diferença? Será que existe alguma?